Mais uma vez o projeto de lei (PL) 478/2007, que “dispõe sobre o Estatuto do Nascituro e da outras providências”, está na pauta da Comissão de Finanças e Tributação (CFT) da Câmara dos Deputados. Será na sessão desta quarta-feira 15, às 10h.
Na quarta passada, o seu relator, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), tentou uma manobra para aprovar o projeto: propôs inverter a pauta, trazendo-o para o início da reunião. Não deu certo. Ele derrubou, então, a sessão.
O PL 478/2007 baseia-se na crença de que a vida tem início desde a concepção, ou seja, antes mesmo do ovo ser implantado no útero. Visa, assim, estabelecer os direitos dos embriões – os chamados nascituros. Parte, assim, da concepção equivocada de que o embrião humano teria o mesmo status jurídico e moral de pessoas nascidas e vivas.
Se aprovado, esse projeto derrubará qualquer direito de a mulher decidir pela interrupção da gravidez, mesmo em caso de risco à sua vida, anomalia grave (como anencefalia) e estupro, situações já garantidas por lei no Brasil.
Em português claro: o embrião terá mais direitos do que a mulher, mesmo quando for resultado de estupro.
O projeto ainda prevê uma bolsa para a mulher vítima de estupro criar seu filho. Porém, esta bolsa, que no projeto é chamada de prestação financeira continuada, só será viável se a mulher denunciar o estupro. Daí ser conhecido como “Bolsa Estupro”.
As organizações e ativistas que trabalham com saúde e direitos humanos das mulheres no Brasil estão contra o projeto 478/2004.
“O projeto viola diretamente os direitos humanos e reprodutivos das mulheres, indo contra a Constituição Federal e a lei penal vigente”, alerta Bernardo Brasil Campinho. “Ele contém 14 equívocos e inconstitucionalidades.”
Bernardo Campinho é professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/RJ.
Em 2011, essa Comissão, na época presidida por Maíra Fernandes, elaborou parecer jurídico sobre a inconstitucionalidade do Estatuto do Nascituro. Fizeram parte do grupo o próprio Campinho, Beatriz Galli e Heloísa Helena Barboza.
Em entrevista a esta repórter, ele avalia juridicamente todo o projeto.
Viomundo – No momento, o Estatuto do Nascituro está na Comissão de Finanças e Tributação. O que ela avalia?
Bernardo Campinho – A adequação financeira e orçamentária do projeto de lei. No caso do PL 478/2007, especificamente, avalia a assistência financeira continuada para crianças geradas em decorrência de estupro, com as seguintes finalidades: cuidados com a vida, a saúde e o desenvolvimento e educação da criança.
O projeto original previa o direito à pensão alimentícia de um salário mínimo para a criança concebida em decorrência de violência sexual. Na Comissão de Seguridade Social e Família, foi aprovado um substitutivo que estabelece o auxílio financeiro se a mãe não tiver condições econômicas de arcar com essas despesas, até a identificação do genitor ou criança ser encaminhada para adoção.
Viomundo – Nessa área, o projeto tem algum artigo questionável?
Bernardo Campinho – Tanto o substitutivo, aprovado na Comissão de Seguridade Social, quanto o texto original têm um problema. A assistência financeira continuada à criança/pessoa gerada em decorrência de estupro ou violência sexual representa a criação de despesa pública. O projeto, no entanto, não indica receitas orçamentárias legalmente previstas, violando os artigos 165, 167 e 169 da Constituição.
Ressalto que não há previsão da fonte de custeio, de inserção no Plano Plurianual nem a determinação do órgão que será responsável pelo acompanhamento e execução orçamentária no caso de estabelecimento desta prestação financeira continuada.
Também não consta sequer a realização de audiência pública ou de qualquer ofício ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão para se estabelecer uma estimativa do impacto orçamentário ou financeiro do projeto.
Viomundo – Quando há custo, é obrigatório apresentar a fonte de recurso?
Bernardo Campinho – É o que determina a Súmula número 1/2008, da própria Comissão de Finanças e Tributação. É inadequado e incompatível que o projeto deixe de apresentar estimativa de seu impacto orçamentário e financeiro bem como a respectiva compensação.
Portanto, tanto o desconhecimento do impacto financeiro quanto a aprovação da matéria no estado em que se encontra contradizem normas constitucionais, legais e os próprios precedentes da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados.
Viomundo – No parecer elaborado pela Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/RJ, são listados 14 equívocos e inconstitucionalidades. Quais o senhor destacaria do ponto de vista de direitos humanos e fundamentais das mulheres?
Bernardo Campinho: Pelo menos três pontos inconstitucionais do projeto 478/2007 afetam profundamente os direitos humanos e fundamentais das mulheres. Primeiro: as restrições ao direito da mulher e gestante são muito maiores do que os benefícios trazidos ao nascituro ou embrião.
Viomundo — Por favor, troque em miúdos.
Bernardo Campinho– Pelo Estatuto do Nascituro, a restrição de direitos da mulher não é acompanhada de quaisquer ganhos ou formas de proteção, pois há sérias violações ao direito de liberdade da mulher gestante, à sua dignidade, autonomia, segurança e ao seu direito à saúde. O projeto proposto cria uma prevalência ou prioridade do embrião sobre a mulher. A gestante se torna mero instrumento para viabilizar o nascimento com vida do nascituro.
Viomundo – E o segundo ponto inconstitucional?
Bernardo Campinho – O artigo 10 do projeto de lei 478/2007 estabelece que, mesmo não havendo possibilidade de vida extrauterina para o feto, a gestante é obrigada a se submeter a todos os tratamentos existentes, mesmo com sérios riscos à sua saúde, com o objetivo único de assegurar o desenvolvimento e a integridade do embrião. Só que isso impõe à gestante a violação de sua integridade psicofísica garantida pelo artigo da nossa Constituição.
No substitutivo aprovado, o foco continua sendo nascituro em detrimento dos direitos e da saúde da mulher, que sequer é mencionada no dispositivo.
Viomundo – E o terceiro ponto?
Bernardo Campinho – Além de violar o direito ao aborto legal em caso de estupro, afronta o direito à saúde assegurado pelo artigo 196 da Constituição. É que o projeto 478/2007 dificulta o acesso aos serviços de saúde sob a falsa alegação de desnecessidade do aborto, já que o Estado vai bancar a criança gerada pelo estupro, ou mesmo por eventual e absurda interpretação de abolição do aborto legal pela nova lei.
Viomundo – Pelo Estatuto do Nascituro o estuprador teria reconhecida a paternidade do fruto do seu crime?
Bernardo Campinho — Tanto o projeto original quanto o substitutivo, aprovado na Comissão de Seguridade Social, interpretam a paternidade como fato biológico absoluto, estabelecendo a obrigação do pai/genitor, ainda que perpetrador da violência sexual, de arcar com a manutenção econômica da criança. Ou seja, o estuprador, se localizado, aparecerá na certidão de nascimento como o pai.
Viomundo — Então além de a mulher ser obrigada a ter o filho resultante de estupro, ela será obrigada a ter contato com o estuprador?!
Bernardo Campinho – Exatamente. Aberração completa. O Estatuto do Nascituro legitima a violência contra a mulher assim como viola os direitos fundamentais à segurança e a integridade moral dessa mulher.
Ao sujeitar a mulher a desenvolver relações pessoais com o estuprador, em virtude do reconhecimento legalmente determinado de qualidade de pai do (a) filho(a), o projeto de lei 478/207 despreza o caráter social e afetivo da construção jurídica da paternidade e negligencia as escolhas da mulher. Mais ainda. Aquela que é casada e tenha sofrido violência sexual, o cônjuge dela passa a ser obrigado também a conviver com agressor, agora reconhecido como “pai/genitor”.
No cenário de aprovação do PL 478/2007, o agressor poderia inclusive, depois de resolvida a sua situação perante a Justiça Criminal, reivindicar direitos de visitação ou o exercício conjunto de tarefas de cuidado, criação e educação da criança. Bastaria alegar que o Estatuto do Nascituro estabelece obrigações materiais, o que lhe asseguraria, ainda que implicitamente, os direitos e as obrigações morais com relação à criança.
Viomundo – Que outros problemas tem o projeto?
Bernardo Campinho — O artigo 12 do substitutivo aprovado traz uma proibição, de interpretação ambígua: “É vedado ao Estado ou a particulares causar dano ao nascituro em razão de ato cometido por qualquer de seus genitores”.
Que tipo de ato dos genitores autorizaria o Estado ou particulares causar dano ao nascituro?
O projeto 478/2007 e seu substitutivo não fornecem quaisquer indícios para delimitar o âmbito de abrangência do dispositivo mencionado. A redação desse dispositivo é confusa e pode levar a interpretações equivocadas, inconstitucionais e negadoras de direitos das pessoas nascidas e vivas. Até porque ele não qualifica o dano nem discrimina quais as condutas possíveis de causar este dano.
Há ainda risco de se entender, por meio de interpretação sistemática e teleológica, que o aborto legal em caso de risco de vida seria tacitamente revogado, o que consubstanciaria violação à dignidade humana da mulher, dos seus direitos à vida e à integridade psicofísica — todos constitucionalmente consagrados.
O texto original do PL 478/2007 traz ainda outros problemas e inconstitucionalidades: cria confusão em relação ao exercício de direitos patrimoniais e de herança; estabelece o crime de aborto culposo, proíbe pesquisas com células-tronco, veda qualquer manifestação pública sobre liberalização do aborto e mesmo o estudo do fenômeno, violando a liberdade de expressão constitucionalmente garantida.
Viomundo – O que é o aborto culposo? É mais uma criminalização da mulher?
Bernardo Campinho — É a penalização da mulher que provocar o aborto por negligência ou imprudência, ou seja, é a punição da mulher que aborta por descuido, mas sem intenção de fazê-lo.
Está previsto no projeto original, mas foi retirado do substitutivo. Agora, isso aconteceu não porque foi rejeitado, mas porque a relatora na Comissão de Seguridade Social e Família entendeu que devia constar de um projeto específico sobre matéria penal de proteção ao nascituro.
É um verdadeiro exercício de vulgarização do Direito Penal. Uma demonstração de uma sanha punitiva contra a mulher que não cumpre “adequadamente” seu papel de trazer a criança à vida.
Viomundo – Em vários momentos, o senhor fez observações sobre o projeto substitutivo aprovado na Comissão de Seguridade Social. As partes suprimidas estão mortas?
Bernardo Campinho – Não. O projeto original pode ser restabelecido a qualquer tempo durante a tramitação legislativa. Por isso, a crítica e a oposição ao Estatuto do Nascituro devem considerar ambas as versões do projeto 478/2007, evidenciando as inconstitucionalidades, contradições e violações de direitos que podem ser consagradas, caso seja aprovado no Congresso Nacional.
Estatuto do Nascituro: Íntegra do parecer da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB – RJ by Conceição Lemes
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