Para um dos maiores patologistas do país, o excesso de cautela para enfrentar o possível surto de microcefalia pode incapacitar muitas crianças.
O Brasil pode estar sendo palco da manifestação de um vírus capaz de incapacitar um número sem precedentes de brasileirinhos. Informe epidemiológico divulgado nesta terça (24) pelo Ministério da Saúde (MS) atesta que já são 739 casos notificados de microcefalia em recém-nascidos de 160 municípios de nove estados brasileiros do nordeste e centro-oeste. Na semana passada, eram 399.
As causas do problema parecem ser complexas e ainda estão sendo investigadas pelas autoridades sanitárias. Mas há fortes suspeitas de que estejam relacionadas à entrada em circulação no país do Zika vírus, transmitido pelo aedes aegypti, aquele mosquito velho conhecido dos brasileiros por conta da dengue.
É um quadro grave que, na avaliação de um dos maiores patologistas do país, o médico, professor da USP e pesquisador de Harvard, Paulo Saldiva, precisa ser tratado com a seriedade que a situação requer. “As mães brasileiras precisam ser orientadas a, se possível, não engravidar neste período”, alerta ele.
Entretanto, o que se vê, na avaliação dele, é um ministro da Saúde que abusa da cautela enquanto apura melhor as causas do problema e parece esperar uma intervenção divina. Na imprensa, o assunto é tratado com um distanciamento que quase chega a configurar total invisibilidade.
Na dúvida, o melhor é agir
Conforme Saldiva, a microcefalia pode ser decorrente de fatores diversos, que vão desde agentes contaminantes ambientais, como verificado, por exemplo, após o desastre radiativo em Cubatão, até deficiências nutricionais, como a de vitamina B-12 ou de ácido fólico, passando por infecções virais que a gestante contrai, como pode ser o caso do Zika vírus. Era, até então, considerado um problema de incidência relativamente rara no país, embora grave. Em 2014, foram 147 casos notificados no país inteiro. Em 2013, 167.
“A microcefalia é um evento relativamente raro, mas muito incapacitante. A cabeça fica pequena porque o cérebro não cresceu. Então, há um prejuízo no desenvolvimento cerebral. E a pessoa vai ter várias sequelas: convulsões frequentes, retardo cognitivo, surdez, problemas motores. Dependendo da região do cérebro que não ficou legal, essas pessoas vão necessitar de acompanhamento para a vida inteira”, esclarece.
Por isso, Saldiva defende que, ainda que as autoridades públicas ainda não tenham certeza de que a causa é virótica, a hora é de agir. “Como não existe vacina e nem tratamento para o Zika, a única possibilidade de conter o avanço da microcefalia, se a causa for mesmo o vírus, é pedir as mães que evitem engravidar e, se já estiverem grávidas, que evitem ter contato com pessoas com suspeita de dengue ou mesmo com o mosquito transmissor. Na dúvida se a causa é ou não o Zika vírus, o melhor a se fazer é trata-lo como se fosse”, aconselha.
O nó da saúde pública no Brasil
O patologista avalia que a saúde pública no Brasil vai bem, mas só até determinado ponto, que é a atenção primária e a vigilância epidemiológica. Nos últimos anos, segundo ele, todos os indicadores melhoraram: a mortalidade materna caiu, a infantil idem, a expectativa de vida aumentou, a distribuição de remédios para diabetes e hipertensão fez a diferença. O médico acrescenta que o Programa Saúde da Família, no geral, é uma experiência exitosa que, inclusive, facilita a vigilância epidemiológica.
Ele lembra que, recentemente, o Brasil identificou o vírus da poliomielite entrando no Aeroporto de Cumbica e conseguiu agir muito rápido. As novas ocorrências de febre amarela também foram contidas, porque, em ambos os casos, a vigilância epidemiológica detectou logo o problema e havia vacinas para fazer a contenção.
Um possível surto de microcefalia por transmissão do Zika Vírus é grave porque foge deste padrão. “O nó da nossa saúde pública é esse: se a pessoa fica doente mesmo e precisa de uma medicina intervencionista ou sofisticada de diagnóstico, aí não tem para todo mundo”, avalia.
Hipóteses teóricas
Segundo ele, o Registro Nacional de Nascidos Vivos exige notificação compulsória das más formações congênitas. E isso possibilitou que fosse descoberto, infelizmente à posteriori, um aumento de casos de microcefalia em Pernambuco. Um aumento bastante expressivo, especialmente nos lugares em que o Zika vírus havia circulado. Entretanto, não há registro na literatura médica de microcefalia causada pelo Zika, o que dificulta ainda mais o diagnóstico do quadro brasileiro.
“O Zika tem duas variantes: um vírus que é africano e outro que vem da Oceania, com diferentes graus de agressividade. Mas em nenhum dos lugares onde ele foi notificado, há associação com a microcefalia. Então, como se explicar o que ocorre no Brasil? Uma possibilidade teórica é a associação com algum fator nutricional, como falta de vitamina B-12 ou ácido fólico, mas não me consta que na África ou na Oceania as condições nutricionais sejam melhores do que no nordeste brasileiro”, pondera.
Segundo ele, outra possibilidade é que, como a taxa de mortalidade infantil é pequena no Brasil, e na África existe grande número de abortamento e mortalidade alta, o país pode ter sido o primeiro a conseguir identificar a associação. “A hipótese é a de que, pela primeira vez, o Zika circulou em um país capaz de detectar sua associação com a microcefalia”, explica. A terceira hipótese teórica, de acordo com Saldiva, é que a causa seja um outro vírus que esteja circulando junto com o Zika.
De acordo com o médico, o pior quadro para o país é que seja mesmo o Zika o responsável pela doença. “Se for o Zika, nós teremos um grande problema, porque o vírus circulou muito pelo país e, aí, a microcefalia pode se espalhar para todas as regiões”, adverte.
O ministro errado na hora errada
Paulo Saldiva afirma que a postura do ministro da Saúde, Marcelo Castro, em nada tem contribuído para a solução do problema. Segundo ele, Castro tem evitado falar publicamente sobre o assunto e, quando o fez, falou besteira. No último dia 18, o ministro declarou à imprensa que “sexo é para amadores, gravidez é para profissionais”, dando a entender que, se a gestante procurar o médico e fizer o pré-natal, seus problemas estarão resolvidos.
Na opinião do professor da USP, isso é uma inverdade que dificulta ainda mais a conscientização da população quanto à gravidade do momento. “Ele traduziu aquela posição equivocada de que, se a gestante for ao médico, qualquer problema estará resolvido. E para a microcefalia não tem jeito. Não existe alternativa terapêutica. Aliás, muitas coisas em saúde pública não dependem do médico. Esgoto não depende de médico. Mobilidade com sedentarismo não depende de médico. Então, eu acho que o ministro não entende muito disso e está lá por algum outro motivo”, critica.
O médico, entretanto, elogia a iniciativa da Vigilância Epidemiológica de decretar Estado de Emergência em Saúde. “Com isso você destrava um pouco a burocracia para determinar exames, importar insumos e não passar por aquele monte de travas que foram colocadas para se evitar desvio de dinheiro. Mas eu não vi ainda uma coisa que considero importante, que seria um mapa de onde circulou o Zika no Brasil. Nós estamos em uma posição meio paralisada porque não sabemos onde o vírus circulou, quais os testes já realizados e nem mesmo o que tem na lama da Samarco”, critica.
Segundo ele, a impressão que se tem é que há duas cabeças pensando o problema – a do corpo técnico do ministério e a do ministro. E a dominante é a última, que não quer causar problema nenhum dentro de um país que já sofre com muitos problemas econômicos e políticos.
“A cautela tem limites. Ao contrário da dengue que causa uma febre, mas a taxa de mortalidade é muito baixa, a microcefalia implica em um grupo de crianças que vai nascer com necessidades especiais, ou necessitando de cuidados especiais, durante a vida inteira. E dependendo do contingente social em que essas mães estejam, a capacidade de provimento social para essas crianças será muito baixa. É um dano permanente”, reforça.
Informação já
O médico patologista acredita que a imprensa também precisa tratar o problema com mais seriedade, principalmente considerando que o ministro da Saúde ainda não cumpriu seu papel de publicar informes nos jornais ou convocar uma rede nacional de rádio e televisão para alertar as gestantes brasileiras. Tratar o assunto de forma protocolar, com distanciamento, não pode ser uma opção para a mídia.
“O que eu vejo aqui nas rádios e nos jornais aqui em São Paulo, que é um centro de reação ao governo, é que parecem existir dois brasis: um que fica discutindo se o Eduardo Cunha vai ser cassado, se o impeachment vai virar, se o Levy cai ou não cai, e o Brasil real, do cara que perdeu o emprego, da mãe que não sabe se pode engravidar, do pai que não consegue colocar o cara na escola. É como se houvesse uma fratura do real problema de um país em relação ao do outro”, observa.
Não ao preconceito
O patologista também alerta que, embora os primeiros casos do Zika vírus tenham sido identificados na África e na Oceania, e chegado ao Brasil através do Caribe, não faz nenhum sentido tratar os imigrantes com preconceito, em especial os haitianos. Segundo ele, é até possível que algum imigrante tenha trazido o vírus, mas a grande migração de brasileiros para o Caribe também influi no contexto. E de forma definitiva.
“Muitos dos portadores do Zika foram combatentes de Força de Paz no Haiti, Há também um contingente grande de brasileiros que passa férias no Caribe, em diferentes países. Não faz sentido culpar a parte mais fraca. Pra variar, estamos fazendo o mesmo de sempre: culpando quem não tem responsabilidade pelo problema”, registra.
Fonte: Carta Maior
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