O texto questiona a legalidade da instalação do processo por não atender aos requisitos mínimos de um procedimento dessa natureza e ressalta a necessidade dos deputados conhecer o trabalho dos profissionais da área.
Da Página do MST
Em nota divulgada na última terça-feira (17), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) manifesta publicamente a sua perplexidade e indignação diante do avanço de medidas contrárias ao reconhecimento dos direitos de populações tradicionais indígenas e quilombolas, agora representada na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada para investigar a atuação da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
O texto questiona a legalidade da instalação do processo por não atender aos requisitos mínimos de um procedimento dessa natureza e ressalta a necessidade dos deputados conhecer o trabalho dos profissionais da área.
"Urgimos essa Casa do Povo a se atualizar e conhecer o trabalho que vem sendo feito por profissionais da antropologia, sejam ou não servidores do Incra e da Funai, abandonando a ignorância interessada e as teorias conspiratórias de uns poucos parlamentares, em favor da verdade, dos princípios fundamentais da República, da luta pela igualdade na diversidade, na busca por uma sociedade mais justa e verdadeiramente democrática", afirma trecho da nota.
Confira na íntegra
Nota da ABA sobre CPI da Funai e Incra
A Associação Brasileira de Antropologia vem publicamente manifestar sua perplexidade e indignação diante do avanço de medidas contrárias ao reconhecimento dos direitos de populações tradicionais, notadamente dos direitos territoriais dos povos indígenas e quilombolas, inscritos desde a Constituição de 1988 e em legislação pertinente ao tema, no que vem sendo uma avalanche orquestrada de proposições legislativas, atos administrativos e omissões judiciárias.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada em 11 de novembro de 2015, às 14 horas, no plenário 11 da Câmara dos Deputados do Congresso Nacional, destinada a investigar a atuação da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na demarcação de terras indígenas e de remanescentes dos quilombos é mais um episódio desse conjunto de ações e omissões. Tal CPI tem como uma de suas metas alegadas “avaliar” o conhecimento produzido pela investigação antropológica, que demonstra pelos termos apresentados no requerimento de instalação dos proponentes, ser-lhes desconhecido e, assim, é tornado caricaturalmente grotesco.
Fruto de requerimento datado de 16 de abril de 2015, apresentado pelos Deputados Federais Alceu Moreira (PMDB-RS), Luis Carlos Heinze (PP-RS), Nilson Leitão (PSDB-MT), Valdir Colatto (PMDB-SC) e Marcos Montes (PSD-MG), a CPI foi instalada, como se sabe, a contrapelo da legalidade, por não atender aos requisitos mínimos de um procedimento dessa natureza, como o mandato de segurança interposto junto ao STF pela Deputada Federal do PT do DF Érika Kokay, em 9 de novembro de 2015, bem o demonstra.
Na justificação apresentada pelos requerentes para a criação da CPI, argumenta-se que medidas administrativas e as respectivas peças técnicas e científicas que embasam os laudos periciais estariam ferindo “todas as garantias fundamentais do devido processo legal, padecendo de unilateralidade e parcialidade; afrontando a ampla defesa, o contraditório, e a igualdade; colidindo com o direito a uma decisão substancialmente justa, com o direito à vida; violando a dignidade da pessoa humana, bem como o direito de propriedade, garantido no art. 5º, caput, e incisos LIV, LV, XXII, da CF/88; se prestando a todo o tipo de manipulação, pois se baseia em um mero laudo técnico, unilateral, ideologizado e arbitrário; e sem defesa possível, revogaria registros públicos seculares; e, por fim, atacaria criminosamente a vida e a dignidade de milhares de pessoas, em nome de teses internacionais.”
Cita ainda o requerimento de instalação da CPI que haveria um conluio entre os Departamentos de Antropologia das Universidades, os profissionais da antropologia, os órgãos do Executivo – notadamente a Funai e o Incra – as ONG’s e o Ministério Público Federal, resultando em delimitações abusivas e arbitrárias.
Tais afirmações demonstram a ignorância de diplomas legais que, dentro dos princípios republicanos buscam restaurar a igualdade material, a partir do reconhecimento da diversidade, implicando na efetivação de direitos originários e na reparação das populações indígenas e de origem africana pelo esbulho histórico da terra, por migrações forçadas e pela escravidão.
Fundada em 1955, e uma das primeiras associações científicas da área das humanidades a serem constituídas no Brasil, a ABA tem, de acordo com as teorias científicas, os métodos, e a ética de uma disciplina existente há dois séculos, com amplo reconhecimento no cenário científico nacional e internacional, buscado propugnar pelo avanço do conhecimento científico, pela formação de profissionais ao nível de mestrado e doutorado, abraçando a defesa de direitos das populações estudadas pelos antropólogos, com base na expertise que a pesquisa etnográfica e documental teoricamente embasada nos confere. Não podemos nos calar diante de posicionamentos que demonstram intencionalmente ignorar, menoscabar e distorcer a verdade científica de acordo com os códigos legítimos nas Ciências Sociais.
Ao contrário desse desfiar de despropósitos, é sabido que, nos processos de regularização fundiária de territórios indígenas e de quilombos, tanto em termos administrativos quanto em termos judiciais, são tantos as instâncias de análise e decisão, e os espaços de defesa de interesses contraditórios ou de contestações – o que tem tornado o processo de regularização fundiária extremamente moroso -, que no trabalho antropológico aí desenvolvido não há margem para arbitrariedades, abusos, ideologias, violação de registros públicos e/ou de direitos.
Sabe-se também que a atuação de antropólogos em processos de identificação e delimitação de territórios requer não apenas maturidade acadêmica, exigindo-se, especialmente pós-graduação ao nível mínimo de mestrado em antropologia, o que pressupõe formação plena e utilização de conceitos, métodos e técnicas da disciplina reconhecida e consolidada, como também maturidade em lidar com complexas situações de conflito, sendo que muitas vezes a integridade física e moral dos grupos sociais pesquisados e dos próprios antropólogos têm sido ameaçadas por interesses e forças antagônicas.
Em reunião recente, a Associação propôs o documento intitulado “Protocolo de Brasília – Laudos Antropológicos: condições para o exercício de um trabalho científico”, que segue anexado a essa nota.
Trata-se de uma condensação clara de princípios assentes no corpo teórico da disciplina, em seus métodos e princípios éticos. Urgimos essa Casa do Povo a se atualizar e conhecer o trabalho que vem sendo feito por profissionais da antropologia, sejam ou não servidores do Incra e da Funai, abandonando a ignorância interessada e as teorias conspiratórias de uns poucos parlamentares, em favor da verdade, dos princípios fundamentais da República, da luta pela igualdade na diversidade, na busca por uma sociedade mais justa e verdadeiramente democrática.
A ABA e outras associações científicas, temos certeza, estarão prontas a cooperar no sentido do esclarecimento desse plenário na direção da verdade e da Justiça.
Brasília, 17/11/2015.
Associação Brasileira de Antropologia, sua Comissão de Assuntos Indígenas e seu Comitê Quilombos.
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