quarta-feira, 11 de novembro de 2015

DEMOCRATIZAR A DEMOCRACIA


Nunca tivemos tantos países democráticos, e por outro lado nunca houve tanta desconfiança e falta de convicção na democracia representativa.

No contexto da globalização econômica, o sistema democrático enfrenta um paradoxo: os cidadãos se desinteressam pela política, como demonstra o aumento das abstenções em muitas eleições. 

Mas, por outra parte, esses mesmos cidadãos desejam controlar melhor a ação pública e participar mais da elaboração de projetos que têm a ver diretamente com eles. 

Como conciliar estas duas tendências?

Pela primeira vez, há no planeta mais sistemas democráticos e mais alternâncias democráticas de governos do que nunca. Há 40 anos, durante a transição na Espanha, havia apenas umas trinta democracias. Atualmente, o número de países democráticos – em diferentes fases de consolidação – é superior, segundo a ONU, a 85. Ou seja, a democracia se transformou no sistema de governo com maior legitimidade no mundo global. Entretanto, nunca estivemos tão descontentes com a democracia. Os sintomas desse mal-estar são cada dia mais visíveis. O número de possíveis eleitores que decidem não votar é cada vez maior. Numa pesquisa realizada pelo Gallup Internacional em 60 países democráticos, só um de cada 10 entrevistados pensava que o governo do seu país obedecia a vontade do povo.

Em muitos Estados democráticos, se observa também o ressurgimento de partidos de tradição antiparlamentar, a maioria de direita populista ou de extrema direita. Países de indiscutível tradição democrática –Suíça, Dinamarca, Finlândia – estão sendo governados por, ou graças ao apoio de partidos de extrema direita, que questionam a legitimidade do funcionamento democrático atual. Mas também há outro fenômeno: muitos cidadãos humildes, brutalmente golpeados pela crise, questionam a submissão do sistema democrático aos novos megapoderes financeiros e midiáticos. Existe, portanto, uma rejeição ao funcionamento atual da democracia. A confiança nos representantes políticos e nos partidos está se desmoronando. O sistema representativo parece incapaz de dar resposta às novas exigências políticas. E um setor importante da população já não se contenta com a emissão do seu voto a cada tantos anos, e quer participação.

Nessa situação, é cada vez mais difícil realizar reformas ou tomar decisões políticas de certo alcance. Os interesses dos poderosos lobbies ou dos grupos de pressão, as campanhas midiáticas, mas também a defesa de legítimos direitos adquiridos por determinados grupos de cidadãos, dificultam as mudanças. A política já não se atreve a tocar certos temas e, se o faz, tem muitas vezes que enfrentar resistências fortes, quando não desiste, como acontece em alguns casos.

A maioria dos cidadãos estão convencidos de que a democracia é a melhor fórmula de governo existente, mas, por outro lado, também são muitos os que desconfiam dos seus representantes políticos e dos partidos. Recordemos o que dizia o nosso amigo José Saramago: “é verdade que podemos votar. É verdade que podemos, graças à partícula de soberania que nos torna cidadãos com voto, escolher os nossos representantes no Parlamento. É verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria impõe, sempre resultará um governo. Porém, é igualmente certo que a possibilidade de ação democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar o poder das mãos de um governo que não lhe agrade e por outro em seu lugar, mas seu voto não teve, não tem e nunca terá um efeito visível sobre a única força real que governa o mundo, e também o seu país e a sua pessoa: me refiro, obviamente, ao poder econômico, em particular a parte das empresas multinacionais, que crescem e sofisticam seus acordos com estratégias de domínio que não têm nada a ver com aquele bem comum que, por definição, é a inspiração principal da democracia.

Ou seja, estamos diante de um paradoxo dramático: nunca tivemos tanta democracia, e por outro lado nunca houve tanta desconfiança e falta de convicção na democracia representativa. Entre as causas dessa falta de convicção poderíamos citar dez: 1) as enormes desigualdades (ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres), 2) crises do Estado e dos serviços públicos, atacados pelas teorias neoliberais defensoras do Estado mínimo, 3) a falta de uma sólida cultura democrática, 4) o efeito nefasto dos casos de corrupção de políticos (tão frequentes na Espanha e na América Latina), 5) dificuldades na relação entre os partidos e o resto da sociedade civil, 6) a subordinação da atividade política aos poderes fáticos (midiáticos, econômicos, financeiros), 7) a submissão dos governos às decisões das organizações supranacionais (e não democráticas), como o Banco Central Europeu, o G-20, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, a OCDE, a OMC, entre outras, 8) a crescente onda de enfrentamentos entre a sociedade civil e os governos, 9) as discriminações ou exclusões a categorias sociais, étnicas ou de gênero (imigrantes, homossexuais, indocumentados, mulheres, negros, ciganos, muçulmanos, latinos e outros), 10) a dominação ideológica de grupos midiáticos que assumem o rol de oposição e defendem seus interesses, e não os dos cidadãos.

Em muitos países, o crescimento macroeconômico não se traduz em melhoras no nível de vida da população humilde. O que cria mal-estar microssocial. Existe um fator alarmante: uma investigação realizada na América Latina pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) revelou que 45% dos latino-americanos diziam preferir se submeter a uma ditadura que lhes garantisse emprego e salário suficiente do que viver numa democracia que os tirasse da miséria…

Isso significa que muitos dos desafios para a democracia estão ligados à pobreza e à desigualdade. Tocamos aqui o núcleo fundacional do pensamento democrático moderno. Jean Jacques Rousseau dizia, em seu Contrato Social, que o Estado social será vantajoso para os seres humanos somente quando todos possuam algo e ninguém tenha muito mais que os demais.

Por outra parte, no contexto da globalização neoliberal, o Estado perde capacidade reguladora sobre um mercado que, por sua vez, deixa de ser nacional. As empresas multinacionais e os mercados financeiros deixam de necessitar do Estado como suporte. Por isso, o que assistimos hoje é o debilitamento dos Estados. A era dos Estados nacionais, e sobretudo a era do Estado democrático, culminou com a aparição de realidades políticas como os partidos de massas, a cultura de massas e o convencimento coletivo de que os súditos deixavam de ser súditos (que devem apenas obedecer) para serem cidadão (que devem ser convencidos).

Hoje, o Estado nacional cede parte dos seus poderes às instâncias supranacionais (por exemplo, a União Europeia) e também subnacionais (na Espanha, as comunidades autônomas), devido ao fato que a globalização e a descentralização ocorrem universalmente e paralelamente, como dois processos simultâneos. A globalização torna a democracia menos relevante, pois há cada dia menos decisões importantes tomadas dentro do âmbito dos Estados nacionais. A democracia realmente existente vive, desse modo, um conjunto de transformações que a situam muito longe dos seus três modelos matrizes: a reforma parlamentar britânica de 1689, a revolução estadunidense de 1776 e a revolução francesa de 1789. O eleitor deixa de ser cidadão (que deve ser convencido) para ser um mero consumidor (que deve ser seduzido). Neste panorama cultural, o exercício da democracia representativa deixa de ser uma atividade cheia de sentido para se tornar, aos olhos dos cidadãos, um espetáculo interpretado por uma casta alheia, da qual ele não participa realmente.

Temos portanto uma dupla transformação. A globalização diminuiu o peso do Estado nacional e a relevância da vida política democrática, enquanto a transformação cultural que levou à tele-vídeo-política destruiu as noções dos cidadãos de direitos sociais e serviços públicos.

Podemos dizer que estamos numa situação na qual os instrumentos da democracia, forjados durante dois séculos, deixaram de ser eficazes. Parece que assistimos o triunfo generalizado da democracia, e na verdade o que vemos é o ocaso dos seus últimos êxitos. Prevalece uma marcada exclusão da maioria da população a respeito das decisões tomadas sobre os assuntos públicos. O consenso se reduz às minorias (a casta), que não representam a pluralidade de interesses da sociedade.

Assim, emerge a exigência de uma democracia direta, com participação da cidadania na gestão pública. Depois da América Latina, a Europa vive hoje um debate entre a democracia representativa e a democracia participativa. A principal expressão da democracia participativa é a participação da cidadania, um processo no qual o cidadão se envolve, de forma individual ou coletiva, no processo de tomar decisões, no controle e na execução dessas decisões referentes aos assuntos públicos.

A sociedade civil e alguns movimentos sociais estimam que os partidos são os principais causadores da desilusão da cidadania para com a democracia. É um debate estéril: não há democracia sem partidos, e os males dos partidos são, em parte, os mesmos que os sofridos por outros setores da sociedade. Mas os partidos devem assumir que eles sozinhos já não são suficientes para fazer democracia. Precisam reconstruir sua legitimidade com base na transparência e na democracia interna. E admitir que as pessoas já não querem somente meter um voto na urna a cada quatro ou cinco anos… Os cidadãos já não aceitam ver seu rol no debate público limitado a isso.

As constituições da Venezuela (1999), do Equador (2008) e da Bolívia (2009) estão entre as mais avançadas do mundo nesta matéria: falam de democracia participativa e já não de democracia representativa, e se propõem, efetivamente, a democratizar a democracia. Ainda que, em geral, exista um consenso em torno da necessidade de conservar a democracia representativa, aparece agora a evidente necessidade de fortalecer, dentro dela, os mecanismos de participação capazes de superar o divórcio entre a política e a cidadania.

Recordemos que a introdução dos mecanismos de democracia direta (a iniciativa legislativa popular e a consulta popular mediante plebiscito ou referendo) não debilita a democracia representativa. Esses mecanismos existem, por exemplo, na Suíça, na Itália, nos Estados Unidos e cada vez mais na União Europeia. Existe também o mandato revogatório, um mecanismo que só foi estabelecido em escala nacional na Venezuela (inclusive para o cargo de Presidente da República). A Venezuela é o único país do mundo em que se efetuou, em 2005, uma consulta popular para revogar o mandato presidencial. Evidentemente, Hugo Chávez saiu dessa votação com uma vitória que fortaleceu sua liderança, Mas o mesmo mecanismo existe para instâncias subnacionais (regionais ou municipais) em outros Estados latino-americanos, como Argentina, Colômbia, Equador, Bolívia, Peru, etc.

Enfim, o que deve ficar claro é que nossas democracias necessitam de novos pactos sociais e constitucionais para construir democracias de cidadãos – e não só democracias eleitorais – na qual não pode haver exclusões. Além disso, o modelo representativo não vem dando respostas satisfatórias a temas tão atuais como os problemas do meio ambiente, as ameaças contra a biodiversidade, o aquecimento global, o desemprego, o envelhecimento demográfico das sociedades europeias, a cibervigilância massiva, as migrações, a marginalização e a pobreza do mundo.

Para que a democracia continue sendo o melhor modelo de promoção do debate e do diálogo como mecanismos de resolução dos conflitos sociais, é preciso entender que o sistema representativo impede essa participação real e eficiente da cidadania, e se adaptar a esses novos anseios. É evidente, portanto, que a defesa do bem comum a longo prazo só é possível com – e não contra – os movimentos sociais e os cidadãos. Por isso a urgência em democratizar a democracia.


Fonte: Carta Maior

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