Alabama, EUA, 1º de dezembro de 1955: a costureira negra Rosa Parks desobedece à lei e não cede seu lugar no ônibus a um branco, gerando em todo país diversas mobilizações de boicote ao transporte coletivo racista. Tal atitude, aparentemente inofensiva, foi o estopim de um amplo movimento pelos direitos civis da população negra estadunidense e criou referências em todo o mundo. “A verdadeira razão de eu não ter cedido meu banco no ônibus foi porque senti que tinha o direito de ser tratada como qualquer outro passageiro. Aguentamos aquele tipo de tratamento por muito tempo”, disse Rosa em 1992 a respeito de seu ato. A luta naquela ocasião partiu da negação do cerceamento cotidiano do direito à mobilidade urbana de negros e negras.
Reservando as devidas dimensões, levantamos a reflexão sobre que possibilidade temos hoje, no Distrito Federal, de fazer chamado semelhante à população negra local. Teríamos aqui uma realidade de segregação espacial direcionada à população negra? Tentaremos neste artigo aprofundar minimamente esta questão buscando fatos da realidade cotidiana, análises do espaço urbano da capital e da própria situação dos transportes coletivos urbanos no DF.
Começamos com um elemento cotidiano a moradores e moradoras da capital: a interrupção quase total do fluxo dos transportes coletivos, a partir do começo da madrugada, impõe um claro toque de recolher a quem não tem veículo próprio (carros, motos, etc.). Isso porque é justamente a este tipo de transporte, de tipo individual motorizado, que a organização urbanística da capital vem atender: grandes e largas ruas, poucas calçadas, inexistência de ciclovias são características marcantes da “Cidade dos Homens iguais” proclamada por Oscar Niemeyer, arquiteto da capital. Esta construção não teve unicamente aspectos paisagísticos: ela reflete o projeto de espoliação racial levado a cabo pelas elites nacionais, em que os/as migrantes candangos e candangas, em sua maioria negros/as, construíram em precárias condições de trabalho uma cidade planejada para outras pessoas, majoritariamente brancas.
Assim, quem construiu Brasília não pôde desfrutar das belas festas da inauguração: sobrou, após o término das obras, a opção ou de voltar para seus estados de origem ou resistir em ocupações de espaços vazios da cidade, duramente reprimidas. Deste movimento de resistência e repressão surgiram as chamadas cidades satélites, caso notório sendo a C.E.I. lândia (Centro de Erradicação de Invasões). Outras diversas cidades surgiram neste e em posteriores movimentos migratórios (de promessas de terras, renda e emprego), consolidando no DF diferentes aglomerados habitacionais que tem ao mesmo tempo características de cidade e de bairro. Classificaremos, em concordância com Marcel Sant’anna (Mestre em Planejamento Urbano – UnB), estes diferentes conjuntos habitacionais em “territórios negros” e “territórios brancos” do DF, uma vez que se constituem com maioria proporcional da população sendo afrodescendente ou socialmente branca. Atualmente contamos no DF com 29 regiões administrativas, sendo as mais brancas o Plano Piloto, Lago Sul, Lago Norte, Setor Sudoeste, Setor de mansões Park Way. As cidades mais negras são Brazlândia, Estrutural, Itapuã, Recanto das Emas, Paranoá Planaltina, Santa Maria, Gama, Ceilândia, Riacho Fundo, São Sebastião, Sobradinho etc.
Notório é observar que as marcas raciais das cidades denotam também características das próprias regiões administrativas: as mais brancas possuem maior índice de escolaridade, infraestrutura, renda etc. Ás cidades de grande concentração negra é reservado todo o azar de más condições urbanas: policialmente ostensivo, escolas precarizadas, ausência de espaços de lazer, etc. Todavia, mais que pensar isso como simples lógica de reprodução do racismo pelos meios institucionais (estado, políticas de governo etc.) – que certamente ocorrem com grande intensidade – podemos também perceber movimentos da própria população branca para manter esta segregação espacial: seja em abaixo-assinados em contrariedade à construção de escolas públicas (Sudoeste), panfletagens enormes pela não construção das pontes que ligariam o Lago Norte – península privilegiada do DF – ao Paranoá (no caso, o panfleto falava claramente que “Não podemos ligar o Lago Norte com os bolsões de pobreza do DF”) etc. a população branca do Distrito Federal sempre se organizou e pressionou o poder público para que o direito à cidade fosse restringido e que a mobilidade urbana fosse cerceada a algumas áreas. No caso do Lago Norte a ponte não foi construída após plebiscito local e no Sudoeste o projeto de construção da escola pública não caminha há algum tempo.
Nesse espírito, refletiremos agora sobre um terceiro caso, aparentemente mais subliminar, ligado à estrutura da mobilidade no DF. No período da construção do sistema de transporte metroviário no DF (que ligaria as Regiões administrativas da parte sul da Cidade, fazendo linhas da periferia ao centro), comentava-se no Setor de Quadras Sul (SQS, asa sul) – parte do plano piloto – que a partir da construção do metrô os apartamentos da asa sul teriam seus preços desvalorizados em função do maior número de assaltos, estupros, homicídios, roubos a domicílio que ocorreriam nesta parte nobre da cidade. Coincidentemente ou não as obras do metrô não foram terminadas em sua totalidade: das estações da Asa Sul, que seriam 10, somente 4 foram concluídas e o trajeto do veículo, que era prevista para ir até o Gama (que concentra em seu redor Santa Maria e o entorno do DF), chegou só até Taguatinga, sendo expandida muito pouco algum tempo depois.
O argumento especulativo da desvalorização dos apartamentos a partir da mobilidade – em forma de ponte, escola pública ou transporte – que esteve presente na argumentação dos três casos relatados, apresenta uma forma de refletir dos territórios brancos do DF, onde crê-se que a maior circulação de pessoas no centro da cidade traria prejuízos morais, materiais e econômicos à cidade, em todos seus aspectos. Estranho pensar isso, uma vez que a educação é colocada por qualquer demagogo/a como solução aos problemas do país (porque então ser contra a construção de uma escola pública?), que em grandes cidades como São Paulo a construção de viadutos ligando os espaços de elite ao centro são regra e que em geral os locais próximos às estações de metrô, em grandes cidades, são justamente as áreas mais valorizadas? Em uma cidade alicerçada na diferença, construída a partir da segregação espacial de cunho racial não. Aqui a população das áreas nobres inclusive mobiliza-se e organiza-se para manter a estrutura excludente. Mais que planejada, a segregação no DF é reconstruída constantemente pela ação e uso de poder político.
A partir disso, avançamos, a estrutura urbana construída a partir da separação clara de espaços de brancos/as e negros/as, com largas distâncias entre eles, precisa de um elemento a mais, importantíssimo na coroação desta estrutura: um sistema de transportes deficitário, de péssimas condições, controlado por uma pequena oligarquia ligada historicamente aos governantes que mantenha antigos/as negr@s candang@s, migrantes e despossuid@s movendo-se ao centro somente para as funções de subserviência, servidão. Daí uma possível explicação ao alto preço das passagens de ônibus e metrô no DF combinado à precariedade dos veículos, do informal toque de recolher noturno, etc.
E se um grupo social expressivo rebelado com estas condições de transporte, lembrando-se de Rosa Parks e diversas outras lutadoras, nega-se a permanecer em seu estado de subserviência pré-determinada, recusando-se a pagar as tarifas dos ônibus e metrôs? E se este grupo lutar por transportes coletivos que sirvam às vontades e interesses diferentes dos que detêm o poder na sociedade? Aí temos uma situação onde a luta por transportes efetivamente públicos, gratuitos e de qualidade não é inimiga unicamente dos empresários do transporte. Neste caso luta-se também contra a estrutura racista da cidade, à nossa parte. E esta rebelião não pode pertencer a nenhuma sigla, grupo ou movimento, por mais integro e puro que o mesmo seja: deve ser apropriada por diferentes setores sociais, inclusive os de negras e negros em organização. Está feito nosso chamado… por uma vida sem catracas, por um mundo sem racismo.
* Este texto foi publicado em 2007 no Jornal Irohin (http://www.irohin.org.br) na sua 20ª Edição, sendo de autoria minha e do Rafa Kaaos. Fizemos o artigo pro jornal porque na época, como militantes negros do MPL iniciamos uma reflexão sobre as conexões da luta do movimento com as perspectivas antirracistas. Esse ensaio inicial gerou pesquisas tanto da minha parte quanto da dele. E, claro, foi desde nossas vivências em movimento que constituímos o conhecimento que reapresentamos à luta. Espero que todos e todas gostem.
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